Carta a um jovem crítico de literatura

Yevtushenko
Yevtushenko
Brasília, 23 de Abril de 2016
O texto de número 57, dos cem que Benedito se propôs a escrever em cem dias, é uma aula de Literatura. Uma carta a um jovem crítico literário que serve a todo amante da literatura. Uma lista que não se quer definitiva, mas que ajuda a perceber a riqueza do mundo, contemplando um curto período de criação. Uma aula recheada de sentimento, de respeito, de admiração e de conhecimento. Por Benedito Costa
57/100

Sim, meu jovem, eu poderia indicar a você cinco dos autores que acho essenciais para se entender a literatura do século XX, como você me pediu. E cinco autores essenciais para se entender literatura. E os mesmos cinco, talvez, para se ter prazer com a obra de arte. Mas não sei exatamente que critérios eu usaria; se falaria como leitor, se falaria como professor, se falaria como pesquisador ou ainda se falaria como amante da literatura, pois, sim, há uma diferença brutal entre leitores de literatura e amantes de literatura, como há diferenças entre amantes da leitura e amantes da leitura literária.

A grande maioria das pessoas que conheci no meio era amante de outras coisas.

Pois. Poderíamos começar pelos grandes. Digamos, olhando para o céu num dia de noite límpida e enxergando as maiores estrelas. Planetas, estrelas, constelações que aos olhos parecem a mesma coisa. A discussão sobre a grandeza dos autores não é invenção do meu século, nem do anterior. Longa tradição nas Letras tenta enxergar grandes, como se veem estrelas mais brilhantes. Poderíamos citar os óbvios: Joyce,Proust, Kafka, Borges (foto acima), Virginia Woolf. Mas veja como essa lista é injusta. Ela deixa de fora escritores que morreram no século XX, mas que escreveram suas obras capitais no século XIX, como Tolstói. Também deixa de fora Dostoiévski, que morreu na década de 80 do século XIX, embora sua obra seja de uma modernidade indiscutível. Deixa de fora Flaubert. E qualquer lista que deixe esses dois homens de fora é inacabada e injusta.

Repare que essa voz que te fala tem um eu muito definido. O gosto pela leitura é muito pessoal. Tenho amigos eruditos que não gostam das mesmas obras que eu e eu tampouco gosto das obras que eles citam como as melhores da vida. A leitura — e há tantos estudos e tanta tinta foi derramada sobre tal questão — é também um modo de colocarmos egoisticamente nosso eu no proscênio. Lemos — e gostamos — daquilo que nos toca e assim posso me apaixonar por Madame Bovary por que (como teria dito o próprio autor) “eu sou ela”. Somos um pouco dos personagens e situações que lemos. Obviamente, eu posso amar um livro porque ele trata de um lugar que me comove, porque ele pode tratar de um homem e de uma mulher que me comovem, de uma época histórica que me comove.

Minha geração, por exemplo, estava cansada das narrativas sobre a grande guerra e também fechava os olhos para o período militar. Inseridos nele, era como se não quiséssemos ler sobre ele.

Então, a literatura de fuga era muito comum, e demorei para ler os grandes romances sobre a grande guerra, que me comoveram e os quais aprendi a amar e a respeitar. Também demorei a ler romances sobre o período militar (não há grandes romances brasileiros sobre) e alguns que li me comoveram e fizeram entender melhor o que foi o horror desse período sombrio.

Repare que falo de romancistas. Não falo dos poetas. Não falo dos dramaturgos. Embora o romance moderno tenha rompido todo e qualquer tipo de amarras e de ter refutado o conceito de um gênero fechado, tendo inclusive flertado com a poesia e o teatro, não falo de poetas e de dramaturgos. Assim, as listas de romances são injustas com Fernando Pessoa e com Drummond, com Les Murray e Wislawa Szymborska, com Dario Fo e Harold Pinter. Mas vamos pensar o romance como o grande gênero do mundo moderno por excelência, quer pensemos numa origem menos remota, comoCervantes, quer pensemos numa origem mais remota, como Petrônio.

O romance talvez tenha sido o gênero que mais dialogou com outros discursos literários, tento mudado de forma até o extremo de uma quase dissipação, mas nunca desapareceu. E, nessa época em que vivemos, em que as pessoas leem tão pouco as grandes obras, e nessa época em que as pessoas mudaram inclusive o hábito mais comum de ler (ter um livro nas mãos), o romance persistiu. Criou sub-gêneros, estendeu os braços muito largos, estendeu-se, flertou, dialogou, conversou e foi se adaptando aos lugares. E muitos e diferentes grupos se apossaram dessa forma discursiva, e por isso temos romances religiosos, políticos, satíricos, policiais, médicos, forenses, etc.

Do mesmo modo, ficam de fora grandes teóricos e pesquisadores que nos legaram uma escrita maravilhosa: Mommsen, Foucault, Huizinga, Natalie Zamon Davis,Norbert Elias.

Repare que falo de autores europeus, na maioria, ou falo de autores que escrevem em línguas europeias. Nossa ideia de romance é europeia, afinal. Nós não herdamos dos chineses ou dos hindus um gênero narrativo mais poderoso do que o romance. Embora haja nesses lugares narrativas que consideramos romanescas, elas não o são em essência. Mas o poder europeu é tão grande que coloca tudo sob seu cetro. De todo modo, os novos romances advindos das partes mais distantes do mundo não são muito conhecidos. Então, citamos um autor da Finlândia, mas não conhecemos autores lituanos, estonianos, etc. Citamos autores da Turquia, mas não conhecemos autores uzbeques e quirguises. Conhecemos autores da China, mas não do Tibet, da Mongólia, do Vietnã… e mesmo países muitos influentes em suas respectivas regiões não têm poder suficiente para nos fazer chegar seus autores. Não temos tradutores, não há interesse das editoras em autores do Laos ou de Mianmar… não temos acesso. Descobri poetas que eu muito queria ler em vietnamita e em tai. Infelizmente, apenas trechos ou poemas esparsos foram traduzidos para línguas europeias. Afora isso, há muita força do inglês. Veja-se o número de prêmios Nobel nessa língua. Assim, perdemos bastante.

Repare que falo de autores, mas às vezes é necessário falar de obras específicas. Talvez todo Thomas Mann (foto ao lado) seja relevante (claro que é, para um estudioso da obra desse prosador), mas há autores de uma obra só, como Tsípkin, para ficarmos num só exemplo. E há autores com apenas uma ou outra obra de relevância. As demais são para apaixonados — ou talvez para exegetas que nos farão ver o quanto perdemos de um autor esquecido ou obscuro, como fazia tão bem Susan Sontag.

Qualquer lista também é indecente. Ela não leva em consideração os autores nas margens, dos guetos, da sombra, o autor incógnito, o autor que não apareceu.

As listas também são injustas quando deixam de lado movimentos importantes da literatura, seja o arrojo do Olipo de Raymond Quenaeu, seja o do “tremendisto" deCamilo Jose Cela, etc. Citando-se romances, também deixamos de fora importantes autores ou obras, como “As cidades invisíveis”, “O livro de areia”, a ficção de Schulz. Ou seja, somos todos injustos.

Serei injusto, portanto.

E a lista é móvel. A cada vez que a vejo, mudo algo.

101 romances

1. rosa, guimarães : grande sertão: veredas
2. lispector : perto do coração selvagem
3. zulmira tavarez : em nome do bispo
4. bernardo carvalho: nove noites
5. gonçalo tavares: o bairro (todo o conjunto)
6. graciliano ramos: são bernardo
7. saramago: memorial do convento
8. walter hugo mae: a desumanização

9. lampedusa: o leopardo

10. carlo emilio gadda: aquela confusão louca na via merulana
11. italo svevo: a consciência de zeno
12. dino buzzati: o deserto dos tártaros
13. italo calvino: se um viajante numa noite de inverno
14. pier paolo pasolini: meninos da vida
15. alberto moravia: la ciociara

16. natalie sarraute: infância
17. claude simon: a estrada de flandres
18. camus: o estrangeiro
19. camus: a peste
20. yourcenar: memórias de Adriano
21. yourcenar: a obra em negro
22. yourcenar: alexis
23. georges perec: vida, modo de usar
24. pierre michon: vidas minúsculas
25. céline: viagem ao fim da noite
26. houellebecq: a possibilidade de uma ilha
27. gide: os moedeiros falsos
28. gide: o imoralista
29. gide: a porta estreita
30. genet: nossa senhora das flores
31. genet: pompas fúnebres
32. andre malraux: a condição humana
33. marguerite duras: o amante
34. proust: em busca do tempo perdido
35. bernanos: sobre o sol de satã



36. mann: morte em veneza
37. mann: a montanha mágica
38. mann: josé e seus irmãos
39. grass: passos de caranguejo
40. tomas berhard: extinção
41. tomas berhard: o imitador de vozes
42. alfred döblin: berlin alexanderplatz
43. kafka: a metamorfose
44. kafka: o processo
45. robert musil: o homem sem qualidades
46. robert musil: o jovem törless
47. elfriede jelinek: a pianista
48. sebald: austerlitz
49. arthur schnitzler: breve romance do sonho
50. peter handke: a perda da imagem ou através da serra de gregos
51: herta muller: o homem é o grane faisão sobre a terra

52. murakami: minha querida sputnik
53. murakami: kafka à beira mar
54. murakami: norwegian wood
55. yasunari kawabata: no país das neves
56. junishiro tanizaki: amor insensato
57. junishiro tanizaki: as irmãs makioka
58. yukio mishima: mar da fertilidade
59. yukio mishima: o templo do pavilhão dourado
60. soseki: memórias de um gato

61. mcewan: jardim de cimento
62. e.m.forster: maurice
63. onddatje: o paciente inglês
64. virginia woolf: passeio ao farol
65. evelyn waught: memórias de brideshead
66. tóibin: o mestre
67. henry james: as asas da pomba
68. joyce: retrato de um artista quando jovem
69. joyce: ulisses
70. naipaul: os mímicos
71. thomas pynchon: o leilão do lote 69
72. paula fox: desesperados
73. paula fox: pobre george
74. jonathan coe: a casa do sonho
75. vladmir nabokov: lolita
76. dan rhodes: timoleon vieta volta para casa
77. somerset maughan: o veu pintado
78. philip roth: o complexo de portnoy
79. fitzgerald: o grande gatsby
80. saul bellow: o planeta do dr. sammler
81. rushdie: os filhos da meia-noite
82. michael cunningham: as horas
83. ford, madox ford: o bom soldado

84. nooteboom: rituais

85. elias canetti: auto-de-fé

86. kadaré: abril despedaçado

87. cortázar: rayuela
88. cabrera infante: três tristes tigres
89. bolaño: noturno do chile
90. bolaño: 2666
91. carpentier: o século das luzes
92. allan pauls: história do pranto
93. márquez: cem anos de solidão
94: vargas llosa: guerra do fim do mundo

95. pávtch, milorad: paisagem pintada com chá
96. kis, danilo: uma tumba para boris davidovitch
97. kis, danilo: jardim, cinzas

98. andrei bieli: petersburgo
99. mikhail bulgákov: o mestre e margarida
100. yevgny yevtushennko: não morra antes de morrer
101. tísipkin: verão em baden baden

Faltou Amos Oz, Falkner, Nagih Mahfuz, Klíma… e tantos outros. Imagine os que eu acho não merecerem estar nessa lista… Mas vou melhorá-la cada vez mais.

Benedito Costa  vive em Curitiba e tem a literatura como parte essencial da vida.
 
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