36/100

Benjamin lembra desse mito ao tratar da violência.* Grosso modo, Latona seria o Estado e o Níobe seria o povo. Quando o Estado não consegue reger o povo e usa da violência irracional, jogando em cima das pessoas o mesmo exército que a devia proteger, é porque não tem mais legitimidade para dirigir os interesses do povo. Lá se vai quase um século da escrita desse texto, pelo menos.
Estamos vivendo duas situações muito bizarras: manifestações legítimas são marcadas por sangue (já citei aqui o caso dos professores do Paraná e o caso dos alunos de São Paulo) e partidos incitam manifestações violentas. No ninho de mafagafos que está a política nacional, difícil saber quem faz parte de um grupo ou quem faz parte de outro e o local em que os dois grupos, como fossem círculos, têm intersecção. Mas dá para imaginar. Os professores que foram à Praça Nossa Senhora de Salete, no Paraná, queriam apenas os seus direitos garantidos. Não foram tirar o PT do poder ou exigir que o PSDB fosse investigado pela Lava Jato na mesma proporção. Já a bateção de panelas na cidade tem endereço certo: Lula e Dilma. Parece maluco dizer isso no meio de tanta corrupção que vivemos, mas é exatamente isso que tem ocorrido. Mas chega de chover no molhado. A mim me parece bem clara a ação das pessoas que se manifestam.
Obviamente a manifestação em si é um direito de todos. Ou deveria. Mas até isso tem sido seletivo no modo de se fazer política no Brasil. O Paraná em particular sofre com um dos mais terríveis (des)governos das últimas décadas — o que é motivo mais do que suficiente para a manifestação das pessoas. Como nos demais lugares, a manifestação legítima dos professores também não teve apoio uniforme ou universal: quem bateu panelas nas falas de Dilma ou Lula não foi apoiar os professores na Praça Nossa Senhora de Salete (como faz supor o parágrafo anterior), local em que os professores foram rechaçados como animais perigosos, num dos episódios mais pavorosos da história do Estado, com forte repercussão nacional e internacional. Então, por um lado, temos os manifestantes, e de outro os silenciosos. De um modo ou de outro, a manifestação das panelas é igualmente legítima, mesmo que tortuosa.
A cobertura da mídia em geral, não obstante, é estapafúrdia: mostrou o sangue dos professores e as panelas, então parabéns para ela, mas é absoluta e raivosamente seletiva na hora de mostrar as manifestações contra a corrupção, em geral, ou contra Lula e Dilma, em particular. Não fosse a internet, pareceria que há unanimidade nesse pormenor. Não há, claro — o que felizmente mostra a incapacidade de a televisão em particular cegar todo mundo com um raio emburrecedor.
No entanto, incitar manifestações, o ódio, o rancor não parece muito legítimo, em nenhuma facção. Aliás, há legislação para isso.

Tomo aqui a tradução de Ernani Chaves: “Para a crítica da violência”.
** Junito Brandão conta que Apolo matou os varões e Ártemis as mulheres. Uma variante do mito mostra que dois sobreviveram. Há também outra Níobe, que teria sido a primeira mulher mortal.
37/100

Vejamos: título e gravata apontam para algo espetacular. Se há uma descoberta de cientistas (aqueles que detêm o discurso da Ciência) sobre as estrelas, então isso pode influenciar a vida de quem acredita no zodíaco. A primeira vista, não haveria nada de estranho ou espetacular, pois cientistas que estudam estrelas têm a ver com o zodíaco (cujos símbolos são observados no céu há milênios), exceto pelo fato de haver diferença entre astrônomos e astrólogos. Bem; a matéria lembra isso lá pelas tantas. O que chama a atenção não é esse pormenor, e sim a chamada na primeira página de um jornal publicado por um grupo cristão. Ora, modernamente, pelo menos cristãos praticantes não creem no zodíaco, ou no horóscopo, pois isso seria contraditório em relação à sua fé, embora possam crer, quase sem embaraço, na Ciência, quando esta não dificulta seus passos no entendimento sobre a criação do universo e sobre a criação humana.
Em verdade, o título é pinçado de uma revista qualquer de, digamos, variedades: “Veja como fica sua vida com a descoberta do serpentário”, coisas do tipo. Mas se temos um jornal cristão (de reconhecida vertente) não há nada de estranho? Sim. Esse é ponto. No decorrer do texto, saberemos da história, que nem é recente. Essa questão surgiu em 2011 e é assunto requentado. Aqui há a velha desterritorialização. Um discurso (no sentido de sua estrutura linguística) migra para outro terreno, ganhando novos tons. Mas por que cargas d’água um cristão deveria saber como o serpentário mudaria sua vida?
O jornal mescla discursos de uma revista do tipo “Amiga”, do tipo “Galileu” e do tipo “Ana Maria”. É um modo de abranger mais e mais gente. A técnica não é nova: é agradável chamar a isso “intertextualidade”, pois isso parece resolver tudo. Mas não resolve; só nomeia. Possivelmente, como se pudéssemos imaginar que caminhos o leitor seguiria, o redator pensa: ele vai ler isso procurando por respostas para sua vida baseada na crença do horóscopo e lá pelo meio vai descobrir “a verdade”. É uma armadilha. Ora, armadilhas são típicas dos discursos da modernidade, e, se você já leu Vieira, não vai se impressionar se eu disser que o discurso barroco é também cheio de “armadilhas”. Mas o mundo moderno/contemporâneo, notadamente o capitalista, criou mecanismos de busca, de contágio, de geração de curiosidade. Marketing e Publicidade reconhecem isso não apenas como ferramenta mas como tática. Não creio evidentemente que o texto da “Folha Universal” consiga com um artigo arrebanhar o leitor para a Igreja (fosse assim, eu já estaria abrindo minha carteira), mas também eu fui instado a ler a matéria, para descobrir como o serpentário mudaria minha vida. Eu sou de Virgem. Vai que mudei para Leão ou Libra? E meus ascendentes?
No decorrer do texto, há duas personagens (no jargão jornalístico): uma guria que acreditava no horóscopo e um ex-bruxo. Perceba-se o tempo verbal desses sintagmas: o passado. Claro, a matéria não pode apontar para o quanto o serpentário vai mudar minha/sua/nossa vida e sim apontar para como isso é nocivo, bizarro, estúpido, errado/contra os valores cristãos “verdadeiros”. Eles mudaram, escolheram um caminho melhor.
A guria mostrada da reportagem ganha foto com a seguinte legenda: “Luana Trajano acreditava nas previsões do horóscopo até que começou a perceber que nada do que estava previsto acontecia na sua vida”. Já o “ex-bruxo” ganha tons mais dramáticos: “(…) Fabiano conta que começou a ter problemas em sua vida. Ele os atribui ao envolvimento que tinha com a astrologia e o mundo oculto”. Claro que o discurso ideológico começa com a seleção vocabular (que cria uma rede semântica), mas todo discurso tem artimanhas mais complexas, como essa que introduz um novo elemento, o do ocultismo, algo demonizado pelas igrejas cristãs. Perceba-se que não se diz que isso não existe. Existe, claro, mas é do terreno do mal. Assim, a igreja pode salvar. As igrejas só podem existir sob a sombra do mal. Se ele não existisse, que seria delas?
Todo o jornal tem essa estratégia da captura e da libertação: até uma mera matéria sobre esmaltes de unha aponta as cores neutras e as unhas lisas como as melhores, uma vez que mais discretas para uma cristã. As unhas trabalhadas e os vermelhos intensos são um problema, menos grave que a crença no ocultismo do horóscopo, mas de todo modo imperdoável.
A investigação linguística (talvez as áreas psi façam algo parecido, possivelmente certa teoria da comunicação também) fixa o olhar em quem fala ou para quem se fala. Entre quem fala e quem ouve existe o texto (num sentido amplo), essa produção que não é uma coisa nem outra. Essas três instâncias do discurso estão dentro de um contexto sociocultural e histórico. Imagine aqui a situação: um jornalista que fala com um cidadão que ele tem como seu objetivo último. O contexto? Um jornal cristão (de uma vertente moderna do cristianismo, sem mais detalhes sórdidos) e um quadro bem mais extenso: o mercado da religião, o sujeito que deve ser conduzido à igreja como uma ovelha perdida, o cidadão que está diante da “palavra verdadeira”, mas que não a conhece ainda, etc. Investigar intenção (da fala) ou interpretação (do sujeito que ouve/lê/assiste) é para fortes. Jamais conseguiremos penetrar na consciência tanto de um quanto de outro, mas o texto está aí, pronto para ser investigado nos seus interstícios. O que ele mostra nem sempre é aprazível.
Não existe jornalismo neutro. Em minha tese de doutoramento, eu demonstro como o jornalismo faz da edição um recurso ideológico (e perigoso). Os jornais em geral transformam suas primeiras páginas e seu espelho na principal forma de (tentar) conduzir o leitor/espectador/ouvinte. A ideia, aqui, é pegá-lo pela mão mesmo e levá-lo à porta do templo. Se ele abrir a carteira, terá dado certo. Se ele for à manifestação da direita, será hora de dizer-se: “eba, conseguimos!”
*Folha Universal, ano 23, edição 1.243. Páginas 10 e seguintes.
38/100

Havia uma pequena praça com monumento na frente da antiga faculdade, a Praça Cândido Dias Cantejón. Lá, uns bancos de concreto. O campus era separado em dois prédios. No antigo, ficava o curso de Direito, onde estudava Guilherme. Do outro lado da rua, o prédio da Engenharia, um edifício brutalista, onde eu estudava.
Encontrávamo-nos ali, nos intervalos ou antes das aulas, ou matando aulas, para falar da vida. Um estudante de Direito e um da Engenharia. Tudo para sermos inimigos. Os grupos não se davam, por motivos os mais diversos, mas Jeriocoacoara nos uniu. Em 1988 eu pisara pela primeira vez as areias cearenses, e Guilherme queria muito ir, mas não tinha dinheiro. Eu o acompanhava pela Av. Dr. João Guilhermino até a casa dele e depois pegava meu ônibus para Santana.
Meus amigos diziam que ele era estranho — e de fato, coçar o rosto até feri-lo talvez não seja lá muito normal, mas eu lia Thomas Mann e isso também era absolutamente anormal na Engenahria. Tínhamos tudo para sermos inimigos. Eu votava em candidatos inexpressivos, de partidos pequenos, e Guilherme defendia ferrenhamente o PMDB. Eu trabalhava para uma empresa ligada ao Sindicato dos Metalúrgicos e fiz cursos no Sindicato e tinha certo interesse em militar no PT e Guilherme o contrário.
Admirava ele um amigo, Paulo, que colecionava carros antigos e defendia severamente políticas mais duras contra os trabalhadores. Ele tinha nojo das greves, achava que isso era coisa de marginal, e frequentava a gente elegante da Vila Adyana, um bairro de gente rica, onde o prefeito da cidade tinha um apartamento no então prédio mais caro da cidade. Mas havia o mar, a juventude, o desgosto pelos cursos em que estávamos matriculados. A política podia ficar de lado, num tipo de silêncio que até hoje sobre o qual me pergunto se é bom ou mau.
Contou-me ele, então, do sumiço da mãe. O pai um dia entrou no quarto e tapou sua boca, acordando-o num susto muito grande. Disse para ele fazer silêncio e que só falasse dez minutos depois de ouvir a porta de fora bater. Eles moravam no andar de cima da loja de alfaiataria do pai dele. Ele ouviu a porta bater, desceu as escadas e o pai estava sozinho sentado, com as mãos nos tufos de cabelo que eram seu orgulho. Eu pisei essa loja numa visita atribulada a Guilherme. A loja eram escombros. Antigas vitrines tinham os vidros quebrados, havia muito pó e aqui e ali restos do que tinha sido um ateliê de alfaiate. O tempo parou nesse lugar, após o retorno do senhor P. à Itália e após a morte da mãe, por câncer, pelos idos de 1990. O senhor P. desistira da mulher e nunca mais falou com Guilherme.
A mãe voltara meses depois, como disse eu, muda. Recusava comida e preferia água, em quantidades pequenas. Olhava para o filho e só sabia chorar. Acordava aos gritos. Temia o menor barulho. Começou a ter pavor de ratos, do escuro, não punha a mão num fio elétrico, mandou retirar todo instrumento de corte à sua vista. Seu pai disse que ela estivera doente num hospital e que o tratamento fora muito severo, mas que aquilo ia passar.
Passou. Nos poucos anos em que convivi com Guilherme, ele já sem o pai, e morando com a mãe naquele ambiente que me lembrava uma mastaba, ela estivera trabalhando para políticos da Direita. Fora secretária de um diretório da Arena e posteriormente, com o multipartidarismo legalizado, passou a tender outros partidos dessa linha. Nunca falei com Guilherme sobre essa Síndrome de Estocolmo da mãe dele. O assunto era delicado demais.

De todo modo, há momentos em que precisamos agir, pois isso tudo pode voltar, a depender de gente que está bem mais preocupada com dancinhas e coreografias anti-corrupção. Em paralelo, é bem possível que haja pessoas que não saibam a diferença entre Hegel e Engels, mas que sabem usar perfeitamente um fio elétrico na vagina de uma mulher.
Benedito Costa é professor de Litertura, vive em Curitiba e tem um olhar agudo, lançado e atento aos dias do Brasil de hoje.