No meio do caminho, 50 fragmentos

O tempo não para
O tempo não para
Brasília, 01 de Abril de 2016
Benedito Costa, professor de Literatura, um dia decidiu que - a partir dali - escreveria cem fragmentos em cem dias. Por obra do acaso eu li essa afirmativa e resolvi abrir espaço no Observatório Brasília para publicá-los. Foi uma bela decisão. Chegamos à metade do caminho, como ele próprio diz na abertura do texto. Haverá outros cinquenta. Haverá outros "Brasis" retratados em suas crônicas do cotidiano. Haverá mais literatura. E das boas. É só seguir. Leia o texto de número 50. Por Benedito Costa

50/100

Cheguei ao meio do caminho, no texto de número 50. Fato: o tempo não perdoa e foge mesmo. Há inúmeros adágios lapidares que dão conta disso.

De Ovídio a Sêneca, na Antiguidade, a imagem de um tempo devorador — claramente herdado de mitos mais antigos que eles, notadamente o de Cronos. Na Idade Média, talvez tenhamos uma pequena mudança, mas ainda retirada a um distante Horácio ou a um admirado Virgílio: “ruit hora”, o tempo passa depressa (em português, variação popular de “o tempo urge”, com outros sentidos implícitos aí). Modernamente, para quem conhece Carducci — um dos primeiros prêmios Nobel — em suas “Odes bárbaras” teremos um eco horaciano, o do tempo devorador que não espera nada e ninguém. Antonio Tabucchi tem um livrinho muito bonito e triste chamado “Il tempo invecchia in fretta”, cuja tradução para o português (pela CosacNaify) ficou deliciosamente ambíguo: “O tempo envelhece depressa”.

No romance “O Buda no sótão”, de Julie Otsuka, temos uma construção bastante rara : a autora constrói toda a narrativa com um narrador no plural: “nós”. Evidentemente, por aí haverá obras com o narrador jogado para a segunda pessoa do singular ou para a segunda pessoa do plural. Eu disse, porém, que tais construções são raras, não inexistentes. Conheci um escritor local que escreveu um belo, dramático e esquecido romance com a forma geral “tu te levantas e vai (…)”. No caso de Otsuka, americana de ascendência japonesa, o “nós” funciona como voz geral de toda uma comunidade, a dos primeiros japoneses que chegaram aos EUA, notadamente a voz feminina que desse caldo emerge rica e tristemente. Não é exatamente uma obra-prima — e espero que a autora continue seu caminho e publique outras obras —, mas é um livro para ser lido como se recebêssemos a hóstia, num ato de contrição. [Roubei descaradamente Wilde aqui.]

Às vezes paro para ler obras “pequenas”. Na impossibilidade de se definir o que seja uma obra “pequena”, deixo aqui ao sabor de uma lógica qualquer essa tentativa. Leio umas dez obras pequenas ou obras “menores” de grandes autores por vez. Depois volto às grandes e difíceis. É um mundo de descobertas e de prazeres. Grosso modo, a leitura de obras pequenas e menores é como procurar pratos simples, mas apetitosos. Procuro às vezes pelo mais humilde pão e o café puro, passado, na caneca de esmalte e isso me dá um prazer incrível, cheio de recordações e prazer mesmo, essa é a palavra. Eu me pergunto o que seria das obras grandes não houvesse obras pequenas e o porquê dizemos — ou alguém diz — que tal obra de tal autor é sua obra máxima, sua “opera prima”. Há autores para os quais a escolha de uma obra-prima é algo complexo, como o caso de Thomas Mann, único escritor que o comitê do Prêmio Nobel quase premiou duas vezes.

Seria “A Montanha Mágica”, “Os Buddenbrook” ou “Dr. Fausto”, se ao lado dessas temos “Morte em Veneza” e “José e seus irmãos”? De todo modo, deixo de lado, como fiz tantas vezes, autores que me foram extremamente importantes, e por quem tenho o maior apreço, mesmo que não domine a língua deles, como Cees Nooteboom e Sebald, mas é nesses momentos que encontro pérolas como uma obra quase esquecida de Heinrich Böll ou Natsume Soseki, Jelinek, Klíma ou Herta Müller. E assim encontrei Otsuka. É hora de parar e ler isso também. É momento de voltar ao Japão do início do século XX (Soseki, Kafu) ou ir até a Alemanha da “hora zero”, momento imediato ao fim da Segunda Guerra (Böll).

Então, voltemos a Julie Otsuka. Já li inúmeros trabalhos acadêmicos e obras sobre a imigração japonesa às Américas, mas confesso que jamais um trabalho cujo conteúdo me fizesse crer que a partir dessa leitura tudo o que fosse escrito posteriormente gravitaria em torno. No entanto, o método de Otsuka e o conjunto de vozes que ela localizou e o modo como as agrupou são encantadores. Como diziam antigamente, é livro para ler-se de uma sentada só.

Diferentemente da maioria dos romances modernos, não há exatamente uma estrutura em torno da qual gire um personagem ou personagens centrais, ou a busca por uma redenção, descoberta ou ainda a perda total. Não seria nem uma comédia nem uma tragédia, se se pode colocar assim [aqui penso no raciocínio percorrido por Agamben ao tentar desvencilhar o nó górdio que habita a questão secularmente discutida sobre Dante, e sua “divina” “comédia”].

Livros pequenos nos dão a chance, igualmente, de construir grandes pontes. Para quem está acostumado a ler literatura japonesa (lembrando que Otsuka escreve em inglês), talvez se recorde de uma autora, Sei Shōnagon. O livro de Otsuka é construído em forma de listas, listagem de vozes que se sobrepõem. A obra mais famosa de Shōnagon chama-se “Makura no sōshi”, O “Livro do travesseiro”, uma das obras mais belas escritas, famosa por listagens. Evidentemente, não posso provar o vínculo entre Otsuka e Shōnagon. O fato de terem sangue japonês é apenas uma coincidência, mas a literatura tem esse poder de descobertas e aproximações. Em tempo: as listas de Otsuka são extremamente trágicas, devido ao tema, e já as listas de “O livro do travesseiro”, não. No entanto, ler uma à luz da outra é um exercício de descoberta do sujeito. Gosto de pensar nessas duas mulheres fazendo listas, cada uma a e em seu tempo, mas sofrendo situação social similar. A mulher continua, mesmo depois de séculos, perversamente dominada. Outras questões aqui, já inclusive discutidas por mim.

Certo: eu falava sobre o tempo, como ele avança rápido e sobre livros pequenos. Bom: comecei a ler Otsuka isolado numa praia afastada. No livro dela voltei a encontrar a situação dos japoneses e descendentes deles no governo Roosevelt: 120.000 pessoas foram levadas a campos de concentração. Dias depois de finda a leitura, vi um documentário sobre o Titanic nazista, onde foram colocadas mais de cinco mil pessoas para serem mortas. E no mesmo dia, caiu-me em mãos um texto chocante sobre o desaparecimento de presos políticos na Argentina, nos chamados “voos da morte”.

Como não fazer as pontes com nossa situação? O avanço da direita no Brasil, o conservadorismo, o crescimento das igrejas mais absurdas, que são tudo menos fé e amor, certo clamor das ruas pelo regime militar, o golpe branco em Brasília, bonecos com roupas do MST ou do PT “enforcados” num inocente almoço dominical, quando crianças correm atrás de balões de gás num restaurante de classe média.

O tempo corre mesmo. E é incrível como volta a casos pavorosos de nossa História. Fazendo releitura dos temas sobre os quais escrevi em 50 dias e 50 textos, muitos voltam, pois estamos vivendo uma época de muitos horrores. Impossível fugir deles, mesmo com a mais bela das literaturas. 

Benedito Costa é professor de Literatura e vive em Curitiba. 
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